domingo, 26 de agosto de 2012

Cão que morde


Enxergar o que os outros pensam é, quase sempre, tão desimportante quanto andar a pé e se orientar por placas. De trânsito. Principalmente porque enxergar não quer dizer que entende, que precisa daquilo para viver. Você apenas enxerga. Assim como vê rostos de pessoas o dia todo, no trabalho, no metrô, na tv. Não quer dizer nada. Apenas que se tem visão. E “ver/enxergar” tem tantos sentidos como a cegueira pode ter. De que forma você é cego?

Tenho dois cachorros.  Dormimos os três no mesmo canto à anos. Minha cama, paralela a uma janela grande de madeira. Daquelas que a gente só encontra em casa de interior. Depois da janela, do lado de fora, duas almofadas para peludos grandes e leais. Sempre me acordam a noite, parece que cães também roncam. Mas durmo tarde e sempre tem visita que dorme em casa. Me vingo.

Um deles é cego há uns 6 anos. A casa é grande, com escadas externas sem corrimão e porão. 

O cego: Akita. 
O outro, Pitbull de visão periférica e noturna. 

Quem entra em linha de frente é o que não enxerga. Não julga o suficiente para ladrar de medo ou susto. Segue seu instinto, escuta, percebe, age e 'fala'. Como fala. É o que avisa com arranhões de porta -muito bem colocados- quando um estranho chega. Desenvolveu o olfato, sabe quando a panela de pressão tem carne ou couve, faz a escolha certa, se levanta quando precisa, dá carinho quando o coração manda, interage sem perder a linha. O pitbull simplesmente obedece. Desatina com tudo que vê, late. Late, late. Mas volta e espera novas ordens dadas pelo que não vê nada que não seja sensação. 

Intuição, coração. Essencial e invisível aos olhos.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Rua sem saída

Eu sei que as palavras mais duras são as que sempre ficam atravessadas na garganta.
Rasgam soltando lágrimas dos olhos. Abertos. Sem expressão de choro no rosto ou rastro de culpa.

Mas não se engane nas suas verdades.   
Mais forte do que a dor de quem sofre é a dor de quem machuca sem escolha.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Falta de amor é como um rio sujo

Boiam garrafas pet de sarcasmo em uma grande paleta cinza de dureza e tensão. O cheiro do esgoto enoja, só não mais que o desgosto de quem já não tem mais nada a perder. 
Afinal, quando nada se tem, nada se perde.

Eu procurei águas límpidas nos olhos daquela mulher, um vestígio se quer. Dei abraços sinceros como dou na minha mãe. Juro que tentei, mas não adiantou.  Ela até tentou ser mais do que conseguia, me viu sorrindo tão plenamente que acabou sorrindo também. Por uns minutos fizemos um mundo mais bonito.  Mas pareceu tarde demais, eu já não tinha tempo, e a ferrugem corroía tão rápido que não dava para chegarmos sãs ao cais. Trincaram barcos, e foram tantos prejuízos que só as idéias de pessimismo de um mundo inteiro fariam igual. 

Acho que toda forma de desafeto deveria ser crime. 

Quando finalmente cometi suicídio, bebi da água e me preparei pra pular em terra, senti que mesmo que não pareça, sempre vale a pena o peso de uma convivência.

Às vezes, basta uma gota de óleo para fazer o rio turvo refletir cores de um arco-íris inteiro.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

de saída

Pus meu vestido vermelho gola v. O mais bonito. Comi quatro brigadeiros grandes, feito criança. Lavei as mãos, fiz uma trança no cabelo e sentei na sala sem ligar a tv.  

“Eu o encontrei”. Quando minha mãe chegou, olhei-a nos olhos e disse. Quando meu pai ligou, pausei uns segundos muda, e falei. Depois, tratei de encontrar todos: os da infância, dos sabores de jabuticaba, as que me olhavam nos olhos e aos que me queriam às costas. Contei mesmo a quem não quisesse saber e aos que queriam, contava forçando a última sílaba, tratando de enfatizar o timbre com mais emoção: “Eu o encon-trei”.  
Às oito da noite, disse isso “tudo” a quem mais me estimava. Bebi a tequila sem encostar no sal e limão. Fiquei doce e eufórica a noite toda. Cheguei em casa antes da lua sumir no céu. Dormi no sofá e quando acordei, sorri como num gesto de profunda satisfação.  Peguei o celular, e liguei.

"E o que ele disse?"

Que não gosta que eu saia com meu vestido vermelho.

verdades sobre o remédio quente

Aquele caminho que eu fiz tantas vezes. O sol descia comigo a ladeira, batendo nas bochechas branquinhas. O gosto da comida do japonês, latejando com a recém lembrança dos olhos de despedida do menino das minhas piadas, indo embora do almoço, e pouco a pouco da minha. Vida.

Vida. Havia vida naquele ar condicionado, aumentava o calor do meu corpo quente. Senão, jamais teria ficado ali. Atrás de políticos e rumores. Tanto que minha expressão era sempre sorridente, como daqueles caiçaras calorosos e felizes que a gente sempre encontrava nas viagens para Santos. 

Ou talvez tivesse a ver com aquele lance esotérico e energias positivas do guru. Na primeira das hipóteses, prefiro pensar que não.

Poderia ser óbvio e prático: só um gosto infinito pela convivência. Remédio para aquela minha necessidade de afago humano. Ou, fosse mesmo o calor transmitido pela presença dele. As mãos suando, ou aquele rubor instantâneo constante. Rubro misturado ao verde, eu só percebi tempos depois de tanto me olhar. 
O fogo precisa de algo para queimar, e era isso que me atraia. Quis provocar meu primeiro grande incêndio. Me queimei.