Ele é o meu batuque. A
porta caprichosamente pintada. Queijo, pão e ovo, bem fritinhos. É a minha meninice escondida. A mania de
rasgar as coisas nos períodos de fúria. Alias, é a minha fúria. Meu impulso e
análise. Ele jura que não se importa, mas me olha com insistência reparando nos meus vestidos bonitos. E assobia
alto. Um sucesso.
É por causa dele que eu ligo o carro já querendo passar a 3ª
marcha. E um bom motivo pra adorar aquelas frutas todas penduradas no boteco.
Eu o observo. Quando nossos olhos se encontram, ele se
perturba, constrange. Ameaça abaixar a cabeça, mas sustenta o olhar e fixa. É
uma timidez momentânea. Mas acaba, afinal, ele É. Das maiores certeza que os meus olhos
conheceram; tanto que eu abro um sorriso.
Sabe o cheiro de casa nova? Ele é isso também. As fatias todas
do bolo que ele vai comendo enquanto fala. A vitamina C, o pedido de cuidado com a rua,
calçadas, estradas e escadas que eu detesto. A intuição que ficou na minha
cabeça. A vontade de não me importar. O desfecho bonito do filme. Ele é o
índice daquele livro de física que eu ganhei e doei, sequer folheei.
Minha rua, minha agonia, as lágrimas da infância. Ele é
tudo. O golpe de judô, o videogame, meu dom espontâneo pra fazer carinho mordendo
e beliscando. Os paquímetros que ficaram nas gavetas, e todo o cansaço que eu
tenho pra arrumar as coisas que ele bagunça.
Ele é o meu não. O olhar que me reprime e depois volta
atrás. Meu baixinho expressivo, o brinquedo engenhoso que eu tive. Os meus
olhos lúdicos. As histórias que ele amarra, a criatividade dos livros. Os cálculos
que eu nunca consegui fazer, ele me ensinou. Eu não aprendo, mas ele aceita. A
gente não entende, mas sempre se aceita. Termina o dia rindo, falando em
inglês.
Ele é a obsessão de uma vida, as cinco mil músicas que gravou no Cd. A
saudade que ele deixa quando pega o avião. Ele é o meu sangue A. Minhas pernas
grossas são dele. A preguiça, toca dos leões. Arte da guerra. O olhar que demora
pra entender o amor. A maior sina da minha genética, miopia. Sufoco quando ele sufoca,
preocupação, estalo. Meu ‘sabe-tudo’. A
raiva horrorosa que eu tenho. Os nós que a nossa sobrancelha dá. Ele é minha vontade
de nadar na praia, mas que delícia.
Eu juro que odeio. Odeio muito o motor do carro roncado
quando ele acelera. E ameaça atropelar todo mundo. Mas meu mundo desvira. Ele
me olha nos olhos com o carinho que eu busco. O aviãozinho dos braços, voando aos
3 meses de vida. As piadas idiotas que eu repito antes de dormir pra mantê-lo
aceso na saudade. Por causa dele, eu tive que aprender a viver. A aceitar a
vida como ela é. A driblar o peso de um orgulho. Sutil, agressivo, incisivo, briguento
de paz e ciumento sem ciúme.
O desespero no telefone. O carrinho de rolemã da infância
dele, e o pintinho que ficou no bolso da calça e não resistiu a viver. Minha loucura, o sempre ‘do contra‘. A questão
que eu não consigo responder, e nem ele. Mas a gente se diverte. Meu
agradecimento, a única lágrima que caiu do olho... Mas nossa, que sincero. A
mesa cheia de restos de borracha. Eu sou a menininha que repousa o queixo nessa
mesa. Ele é o meu pai. Um marrento de sandálias. Rider.
Não que eu tenha crescido. O nosso imenso mundo foi que encolheu.