segunda-feira, 16 de junho de 2014

Atemóia

Estava à toa na vida, deitada no sofá, olhando o meu gato passar e cantando coisas de amor quando apareceu lá em casa essa tal de atemóia.  

Deitava estava e deitada continuei. Esticada, completamente aconchegada no meu mundo azul, sem pretensões de levantar ou me ocupar de algo que não fosse o deleite.
Era eu e uma playlist leve numa sexta à noite, ambos flutuando nas ideias.

Não sou explícita. A vida é inteira e graciosa quando apreciada bem devagarzinho.  Então, aos pouquinhos, fui me apropriando daquela novidade. Primeiro, os olhares direcionados a captar tudo que pudesse. Dá-se a isso o nome de percepção.  Aperceber-se de algo é ter consciência imediata, quase que intuitiva do que lhe atém. Serenamente, fui concentrando as intenções. Nada abrupto, às vezes é muito bom só aspirar bem-estar e prazer. “Bem-estar?”, que belo fim para as minhas tensões! Pensei comigo: -Coisa boa deve ser. Se só de ver já me trouxe peito cheio de carinho e satisfação.

Escamosa, verde, levemente madura, era consistente por fora e por dentro parecia ser mais do que “parecia”. E aparecia. Fácil aos meus olhos. Ficava ali exposta, perto de tudo que vejo, bem no meio da minha sala, numa fruteira bem bonita de vidro trabalhado.
Um bom lugar pra se estar. Uma boa experiência a se ter.

Seria um convite?
Sim, seria.

E eu, como boa entendedora, aceitei.
Inacreditável.
Inacreditavelmente doce.
Inacreditavelmente macia e doce.
Todos os adjetivos que eu teria para uma fruta.
Mas quanto mais a gente sente prazer em algo, menos a gente consegue falar sobre isso no momento. É deleitante. Como pode uma pessoa sentir tanta poesia comendo um fruto?

Isso é prazer.
Prazer com as coisas mais leves. Mas de sabores intensamente incríveis.
E depois que eu soube das proteínas, vitaminas, magnésio, zinco, cobre, cálcio e ferro? Ali encerrava a minha busca. Morango, amora, kiwi, caju, tudo ficou lá trás. Desintoxica-me! Esse é o maior poder da minha atemóia. Expansão de imunidade que eu sempre quis conhecer.
E traz leveza às minhas ideias, enquanto deslizo essas sementes pela boca.  
Dá vontade de ficar jogando de um lado pro outro assim, sem mastigar. Um paradoxo entre sabor, saliva e o prazer devorador da substância. Bagunça meus pensamentos milimetricamente mastigados, em pedaços suaves e crocantes. Pequenos flocos de açúcar mexendo com todo o meu ser. Nova percepção à tudo que conheço, um capítulo de paz e delicadeza.
Essa é a história da menina que se apaixonou por um fruto.
E o fruto dessa história,

É você.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Danças Fúnebres 1

Eu vejo um dia branco, vejo árvores magras com folhas presas por tênues fios, um bocado de neblina e três pardais. É domingo, estou sozinha.

Eu, deitada no banco do parque, usando minha echarpe vermelha, como alívio para o pescoço. Ergo a cabeça pra trás, machuca um pouco, parece que vou rachar. Mas vejo um mundo novo, ameno e de ponta cabeça. Quebra-cabeça. Quebro a cabeça.  E não reajo. Estive colocando um pouco de alma em tudo que vi na semana, mas hoje, hoje é domingo. Estou sozinha.

Estou levemente resfriada, respiro mal, escuto mal, esses tempos loucos de inverno e solzinho bom, sabe? Tudo tão singular. Os tempos de cobertas quentes e roupa pouca. Propício para um chá, um filme, um vinho quente e companhia. Mas hoje, hoje é domingo. Estou sozinha.

Parece que há mais gente nesse parque, quando cheguei não havia nada além dos guardas nas entradas laterais. Olhavam-me em confusão, dentro dos meus olhos, indagando "moça?". Não respondo, não hesito, apenas continuo. Olho fixamente para frente, sem visão periférica, sem direção. 
Mas agora estou deitada, desconfortavelmente, e escuto vozes que gritam. Algo que eu não entendo, mas sei - estão histéricas. Chegaram crianças no parque. Chegaram alguns adultos também, e os pássaros estão cantando estridentes. Há confusão e barulho. É domingo, há muita gente por perto.
Mas estou sozinha.

Alguma coisa além das folhas cai das árvores, não sei exatamente o que é. Observo calada, com os olhos meio cerrados, prendendo a visão pra corrigir a miopia. Mas nada além se revela. Parecem alucinações, a neblina entorpece alguns sentidos meus e tudo parece meio turvo. Embaça. Há imagens mentais se desmanchando em partículas de água. A cerração lutando contra o corpo, um pra me esfriar, um pra me aquecer.
Não há perplexidade. Aceito o transtorno em silêncio. Não há cor nem dor. Há um branco leitoso - do céu, e há a minha pele branca - de neve.

Não há tristeza. E não há o que chorar. É uma dança fúnebre. Tudo está sincronizado, o dessabor com a dissonância. As crianças estão cantando, os adultos falam, vez por outra gritam em tom repreensivo. Imagens que não vejo. Continuo deitada, metade da echarpe vai escorregando para o chão. É nova, macia, aveludada, vermelha. É a única cor que preenche essa desordem. Já não estou mais tão desconfortável quanto antes. Estou mais desconfortável que antes.
Mas continuo deitada. Não há reparo. É um domingo fúnebre.
Estou sozinha.

E não há mais o que fazer.